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Campo aguarda retorno ao Estado de Direito
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Publicado em 13/09/2007 Leôncio de Souza Brito Filho*
As civilizações evoluem com maior ou menor velocidade, podendo retroceder ou saltar mais degraus na sua existência quando consolidam a condição humana, assegurando seus direitos fundamentais pela normatização constitucional. A sociedade brasileira recebeu forte sinalização no rumo do Estado de Direito com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de acolher a denúncia do Ministério Público contra 40 acusados de envolvimento com o escândalo do mensalão. Esta evidente opção pela legalidade gerou uma expectativa no setor de que a lei também passe a ser respeitada no campo brasileiro.
Afinal, o produtor rural vive acossado pelas invasões de terras promovidas por movimentos ditos sociais sem contar com o apoio do poder público para fazer frente ao total desrespeito ao direito de propriedade, cláusula pétrea da Constituição Federal. Em alguns Estados, as ações de reintegração de posse sequer são cumpridas. Dados da Ouvidoria Agrária do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) mostram que, entre 2000 e 2006, ocorreram 1.526 invasões em todo o País. O respeito à lei passou ao largo destes conflitos, jogando a atividade rural num cenário de instabilidade jurídica.
Aliás, o desrespeito à lei e legislar por Decreto foram os instrumentos adotados pelo Executivo para ampliar as ações de desapropriação de terras para além dos tradicionais assentamentos para reforma agrária, que hoje já somam 72 milhões de hectares. A demarcação de terras indígenas segue padrão expansionista, arbitrado apenas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que adota critérios próprios para a identificação de etnias e a localização das terras. O artigo 231 da Constituição reconhece os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Mas como os produtores rurais podem se defender das ações da Funai, que desapropria áreas que não atendem a estas características? Na realidade, por lei, muitas destas terras não poderiam ser reivindicadas e expropriadas pelo Governo.
Vale lembrar voto do ministro Décio Miranda (MS 20.215) ao comentar os prejuízos que ações como estas podem causar. Segundo ele, o “mau uso da utilização das benesses facultada pelo artigo 198 da Constituição Federal desestabiliza toda a base de sustentação em que se fundamenta a sociedade brasileira – respeito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade ...” Mais adiante ele adverte que “o problema é tão alarmante que a segurança dos títulos dominiais, princípio que norteia a estabilidade social, mormente quando expedidos pelo poder público (...) torna nulas face às malsinadas e constantes ampliações de reservas”. Tudo isso por arte de um simples decreto que, segundo o ministro, enquadra a área por mera propositura da Funai.
Ora, se a lei for respeitada, nenhuma terra indígena poderá ser demarcada antes de audiências dos Estados e dos proprietários. Não se concebe uma homologação de demarcação se houver conflito de interesse sem acordo. No entanto, os recursos dos produtores às decisões da Funai são julgados pela própria Funai. Nesse quadro de arbítrio, os decretos do poder Executivo são a grande solução para decisões tomadas à revelia dos preceitos democráticos inerentes ao Estado de Direito. Com base nestes procedimentos, já foram destinados 109 milhões de hectares a terras indígenas no País.
Nova reforma agrária se estabelece, agora, por meio do Decreto nº 4.887/03 que pretende regulamentar o Art. 68, das Disposições Transitórias da Constituição Federal, destinando aos quilombolas as terras que estejam ocupando. Ora, mais uma vez, impõe-se regras processuais para identificação, medição e demarcação de terras por meio de um decreto marcado pela inconstitucionalidade. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) ajuizada pelo Partido Democratas - tendo como parceiros a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e o Estado de Santa Catarina - mostra que apenas uma lei, discutida e aprovada pelo Congresso Nacional, poderia estabelecer esses critérios a serem observados pelos órgãos aos quais foi destinada a competência de aplicá-los. Aponta, também, a inconstitucionalidade de alguns dispositivos do Decreto, como a auto-definição, os critérios para a delimitação de áreas e a conseqüente desapropriação.
“Admitir como válidas essas regras é reconhecer à Administração o poder de ofender direitos de particulares (...)”, argumenta o jurista Ilmar Galvão. E fecha com o conceito basilar, definido por Celso Antônio Bandeira de Melo, que “a razão mesma do Estado de Direito é a defesa do indivíduo contra o Poder Público”. Mas é com base nesta legislação impregnada por vícios de origem que o Governo pretende titular 25 milhões de hectares como terras de quilombolas. Para fazer frente a este processo marcado pela ilegalidade, a CNA propõe ao Executivo revogar ou sustar a aplicação do Decreto nº 4.887/2003 e regulamentar o artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição mediante lei a ser apreciada no Congresso.
O cenário é controverso e ilegalidade virou sinônimo das ações públicas destinadas à área rural. Os produtores, por meio de suas entidades representativas, vêm alertando sobre os prejuízos econômicos e sociais desta política agrária sustentada pelo arbítrio, cujas soluções, salvo exceções, se estabelecem à revelia das leis brasileiras. Assim, mais do que uma pretensão, o que se espera é que o comportamento do STF inicie uma virada à favor da legalidade e do Estado de Direito no campo.
* Leôncio de Souza Brito Filho é presidente das Comissões Nacionais de Assuntos Fundiários e de Assuntos Indígenas da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). |
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