Publicado em 25/05/2017Um perdão de dívidas de ICMS de cerca de R$ 1 bilhão dado à JBS em 2014 é alvo de uma investigação da Procuradoria-Geral de Justiça do Estado de Goiás. O caso pode implicar o governador Marconi Perillo (PSDB). Mas não consta entre os crimes delatados à Procuradoria-Geral da República (PGR) pelos irmãos Joesley e Wesley Batista e os executivos da J&F, a holding que controla a JBS.
Nas delações, há reconhecimento de casos de corrupção envolvendo ICMS em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, São Paulo e Minas Gerais. Mas nada em Goiás, o Estado de origem da J&F.
O caso da JBS em Goiás, porém, guarda uma diferença com os de outros Estados, pois trata de uma dívida da companhia. Nos demais casos, são créditos tributários, cuja propina teria sido paga para que o Estado removesse dificuldades.
Cláusulas de acordos de delação dizem que a omissão de crimes pode implicar, no limite, na anulação do pacto. Outra alternativa seria um "recall" da delação.
Apesar da omissão da história na delação, Perillo não deixou de ser citado à PGR. Num vídeo sobre pedido de ajuda financeira do senador Aécio Neves (PSDB) para a campanha de 2014, Ricardo Saud, diretor de relações institucionais da J&F, relatou uma conversa que teria havido entre Joesley e Aécio. Nessa conversa, o empresário teria dito ao senador que lhe daria um crédito apesar de ele não ter ajudado o grupo enquanto era governador de Minas. Cita então Perillo, que teria demonstrado a mesma ingratidão.
"[Joesley disse a Aécio:] 'Vou tentar te dar o crédito mais uma vez'. E ainda falou para ele: 'Vou fazer para você igual eu fiz com o Marconi Perillo. Cansei de dar dinheiro para o Marconi Perillo através do Jayme Rincón. O Marconi Perillo nunca fez um nada para mim no Estado de Goiás'", relatou Saud. Rincón hoje preside a Agência Goiana de Transporte e Obras Públicas.
O perdão goiano à dívida de ICMS da JBS foi concretizado nos últimos dias de 2014, após alteração legislativa que concedeu isenção total de multas, juros de mora e correção monetária. A empresa devia cerca de R$ 1,3 bilhão, zerou todas as pendências com um desembolso de aproximadamente R$ 380 milhões.
Instituído em 5 de maio de 2014, o programa conhecido como Regulariza (Programa de Incentivo à Regularização Fiscal de Empresas) previa desconto integral de juros e multas só para quem aderisse até 30 de maio. Para a correção monetária, não havia hipótese de redução integral. O desconto inicial era de 50% ou 70%, dependendo da data de vencimento do débito. A JBS não aderiu ao programa nessa fase.
Em 15 de dezembro, porém, Perillo encaminhou uma mudança de regras do Regulariza à Assembleia Legislativa, reforma aprovada em três dias pelos deputados estaduais. Os benefícios ficaram ainda mais atrativos que a versão inicial, de maio. Juros e multas continuaram abonados, e o desconto na correção monetária passou de 50% para 100%. Foi quando a JBS aderiu.
A JBS foi a principal beneficiada por essa mudança. Em 2014, Goiás recuperou, por meio do Regulariza, R$ 1 bilhão em créditos tributários (R$ 560 milhões pagos à vista, o restante parcelado).
Em março de 2015, o presidente da JBS, Wesley Batista, comentou a participação da empresa no Regulariza. Em teleconferência sobre o balanço da companhia, ele foi indagado por um analista sobre o ajuste de R$ 510 milhões no lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização (Ebitda, na sigla em inglês). Respondeu que a grande parte desse ajuste se devia à adesão ao Regulariza: "Tínhamos uma disputa jurídica no Estado de Goiás e isso vem de longo tempo. Desde a época de incorporação do Bertin [em 2009]. Tínhamos autos de infração que era uma disputa de um montante de R$ 1,5 bilhão, que era um número absurdo. Aí decidimos que era melhor a aderir a esse programa. Reconhecemos quase R$ 400 milhões e encerramos a disputa", disse.
Na mesma ocasião, Wesley afirmou que, por causa da disputa jurídica que havia entre o Estado e a empresa, a JBS enfrentava "dificuldades" para renovar benefícios fiscais em Goiás. Na época, a disputa tributária era a única de "relevância" que a JBS tinha no Brasil. "Então, decidimos claramente tirar isso da frente", afirmou. Antes de fechar o acordo, a possível perda decorrente dos autos de infração não estava provisionada pela empresa, pois a área jurídica classificava a chance de derrota no caso como "remoto possível".
Procurado pelo Valor, o Ministério Público do Estado de Goiás confirmou que o caso é investigado. Informou que "recentemente" a matéria que estava no primeiro grau foi enviada ao Gabinete da Procuradoria-Geral de Justiça.
O procurador-geral é a autoridade competente nos casos que atingem autoridades com prerrogativa de foro, como Perillo.
Em Goiás, as circunstâncias políticas do perdão dado à JBS chamaram a atenção, sobretudo pela forma como a história veio à tona. Em 2 de maio de 2014, o jornal goiano "O Popular" teve acesso a um relatório que revelava a dívida tributária da JBS, da ordem de R$ 1,3 bilhão. A reportagem também apontava que o débito da companhia representava 18% da dívida ativa do Estado.
Na época, José Batista Júnior, conhecido como Júnior Friboi -ex-presidente da JBS e irmão mais velho de Wesley e Joesley- era pré-candidato ao governo do Estado pelo PMDB.
Egresso do PSDB e do PSB, Júnior havia se filiado ao PMDB alguns meses antes num evento de grande repercussão que contou com a presença do então vice-presidente da República, Michel Temer, o então governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, e outras autoridades.
Seu objetivo era disputar o governo goiano contra a reeleição de Perillo, que, segundo suas palavras, havia transformado "esperança" em "pesadelo" numa gestão marcada por "corrupção, tráfico de influência, patrimônio não explicado, arapongagem, jogo do bicho: um jeito velhaco de brincar com o dinheiro público".
Inicialmente, Júnior considerou "estranho e suspeito" o vazamento de informações sobre as dívidas da companhia, que deveriam estar sob sigilo. No fim de maio, surpreendeu ao anunciar que estava desistindo da candidatura. Alegou que havia intrigas no PMDB, mesmo após a renúncia de seu concorrente interno, o ex-governador Íris Rezende, que voltou à disputa.
Nas eleições de outubro, Júnior Friboi surpreendeu novamente e manifestou seu apoio a Perillo, que acabou sendo reeleito.
Em nota, Perillo afirmou que "o depoimento do delator do grupo JBS é a demonstração cabal de que não foi usado expediente de doações de campanha em troca de interesses privados no governo de Goiás". Disse que todas as doações para sua campanha de 2010 foram feitas de acordo com a legislação. E que na campanha de 2014 não recebeu "um centavo sequer" da JBS.
O secretário da Fazenda, José Fernando Penha, disse em nota que o Regulariza foi elaborado "pelos mesmos critérios técnicos de leis similares" e aprovado pela Assembleia "sem questionamento legal". Citou que 969 empresas regularizaram suas dívidas com o Estado em dezembro de 2014, o que resultou na recuperação de cerca de R$ 1 bilhão em créditos tributários. Afirmou que a existência de débitos "constitui obstáculo à atividade empresarial, afetando, inclusive, a competitividade".
A JBS afirmou por escrito que "o programa [Regulariza] foi disponibilizado a todas as empresa que possuíam débitos no Estado e amplamente divulgado" Ao jornal "O Popular", Rincón disse que Saud não o acusou de ter recebido propina. Até o fechamento dessa edição, Júnior Friboi e a PGR não haviam se manifestado. Com informações do Valor.