Publicado em 04/03/2015A Organização Mundial do Comércio (OMC) decidiu que os Estados Unidos proíbem ilegalmente a entrada de carne bovina in natura (resfriada ou congelada) da Argentina em seu mercado. O Valor apurou que a decisão preliminar dos juízes da entidade, já enviada confidencialmente a Washington e a Buenos Aires, dá razão à queixa argentina sobre a barreira, imposta sob argumentos sanitários. É a primeira vitória argentina em um contencioso comercial nos últimos anos, e o Brasil poderá ser beneficiado por ela.
Os panelistas da OMC condenaram a proibição e, entre outros pontos, a "demora injustificável" dos Estados Unidos em reconhecer o princípio da regionalização sanitária e fitossanitária, pela qual áreas sem ocorrência de febre aftosa podem ser autorizadas a exportar. A decisão considera que os EUA violam diversos outros artigos do Acordo de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS, na sigla em inglês), impondo uma derrota esmagadora aos americanos em uma área especialmente sensível do comércio agrícola.
Em sua linguagem tradicional, o "xerife" do comércio global determina que os EUA devem "entrar em conformidade'' com as regras internacionais - e isso significa, na prática, que Washington tem de derrubar a barreira, como adiantou ontem o Valor PRO, serviço de informações em tempo real do Valor.
Em outubro, os EUA sinalizaram que o resultado do painel na OMC não teria impacto, porque duas decisões tinham alterado significativamente a disputa com a Argentina. Primeiro, porque Washington havia lançado uma determinação formal que reconhecia a Patagônia como região livre de febre aftosa. Em segundo lugar, porque os EUA colocaram em consulta pública uma proposta para permitir a importação proveniente do norte da Argentina, condicionada a medidas apropriadas de controle que os argentinos reconheciam que eram necessárias.
Porém, a embaixada da Argentina em Washington diz que o país segue sem poder exportar carne bovina fresca para os EUA. De fato, Washington publicou uma proposta para permitir a importação. O período de comentários terminou em 29 de dezembro. Mas até hoje os EUA não publicaram uma decisão final, mantendo barrado o produto.
Ainda que a decisão dos juízes da OMC seja definida como "interina" no jargão da entidade, na prática é a decisão final. Mas ainda demorará semanas até que a entidade anuncie o veredito final e, depois, publique o relatório do painel. Normalmente, o perdedor recorre ao Órgão de Apelação para ganhar tempo para se adaptar à decisão dos juízes. De qualquer forma, na teoria a decisão tende a influenciar uma reativação dos embarques de carne bovina argentina para o mercado americano. E poderá ajudar também o Brasil, cuja carne bovina in natura continua sem poder ingressar nos EUA.
As tratativas da Argentina com os EUA para derrubar a barreira duram 12 anos. Mais recentemente, o governo de Cristina Kirchner abriu o contencioso na OMC como uma retaliação à denuncia de EUA, União Europeia e Japão contra barreiras argentinas consideradas protecionistas. Paralelamente, a Casa Rosada abriu também uma disputa contra as sobretaxas da UE sobre a entrada de biodiesel, mas esse caso se arrasta mais lentamente.
Os exportadores brasileiros de carne bovina in natura reclamam de demora idêntica de Washington. Os frigoríficos chegaram a alimentar esperanças de poder acessar o mercado americano como uma das compensações que os EUA poderiam oferecer para não sofrerem retaliação por causa dos subsídios ilegais concedidos aos produtores de algodão. O governo Obama, contudo, recusou essa parte da barganha.
A vitória argentina na OMC alimenta a expectativa de especialistas de que o governo brasileiro poderá ser politicamente mais incisivo nas tratativas para a abertura do mercado americano para sua carne bovina in natura. De um lado, existe a esperança de que uma viagem da presidente Dilma a Washington ajude a impulsionar essa medida, que poderia ser até um dos principais pontos da visita. Mas os EUA poderiam argumentar que nem sempre as questões sanitárias de um caso se aplicam necessariamente a outro.
Para Leonardo Sarquis, diretor da consultoria argentina Confiagro, a decisão da OMC, quando confirmada, tende a favorecer o Brasil mais rapidamente, já que a Argentina segue presa às próprias amarras que criou com as restrições. As exportações de carne bovina são controladas desde março de 2006, e depois disso os embarques ficaram restritos a cotas atendidas por alguns frigoríficos. Com 180 mil toneladas embarcadas em 2014, a Argentina, que em 2004 exportou 700 mil toneladas, caiu para o quarto lugar entre os exportadores de carne bovina in natura do Cone Sul. O Brasil, que ontem foi informado da retirada do embargo do Iraque a sua carne bovina processada, lidera o ranking.
E, segundo ele, mesmo que a decisão da OMC seja uma vitória, também é preciso ver se a Argentina terá condições de atender à demanda americana, já que nem a cota Hilton da UE, para carnes premium, o país consegue alcançar. Como qualquer outro setor privado do país, também os produtores de carne esperam com ansiedade a mudança de governo. A eleição presidencial será em outubro. Depois disso, Sarquis calcula que o país levará três anos para recuperar tempo e terreno perdidos. Com informações do Valor.